terça-feira, 11 de dezembro de 2012

these foolish things – billie holiday


do primeiro disco da compilação lady day – the complete billie holiday on columbia (1933-1944), de 2001.


billie não fez fama com lps. ela tem pouquíssimos discos, e apenas um de nota: o último, lady in satin, que parece existir apenas com o propósito de notarmos como sua voz está craquelada, o espírito devastado sobrevindo das ranhuras). seus compactos (78rpm) exigiam que as músicas não tivessem duração superior a quatro minutos, então todo o sensacional catálogo dela na columbia segue esse preceito. qual foi minha surpresa, há um tempo, ao ver que uma das minhas letras preferidas (a desta música, escrita a três mãos) é muito mais extensa, e que billie começou a música no meio e terminou antes do fim. descobri isso quando peguei uma versão de quase oito minutos da ella fitzgerald e reparei que desconhecia metade da letra.

metade dos três minutos e vinte dessa música consiste no arranjo do teddy wilson e orquestra. billie entra com o bonde andando, o que é perfeito pruma música sobre apegar-se desajeitadamente ao passado. o que é impressionante é que a letra integral da música é muito inferior à usada por billie. eis a parte inicial da letra, cortada desta versão:

Oh! Will you never let me be?
Oh! Will you never set me free?
The ties that bound us
Are still around us
There's no escape that I can see
And still those little things remain
That bring me happiness or pain

cortou-se isso e o tom queixoso foi embora, além de uma dessas oposições tão bobas porque impossíveis de dissociar (felicidade ou dor?). a estrofe inicial dá um tom de armadilha emocional a uma música que entende as recordações de um amor pretérito com a leveza que elas têm – ou melhor, que elas podem ter. a partir daí a letra enumera diversos drops, momentos perdidos no tempo, uma ladainha que só faria sentido para ela, e a desorientação que ela sente é transmitida a quem escuta: billie começa falando sobre um cigarro que traz marcas de batom, uma passagem de avião para recantos românticos. ela não parece incorrer nessas pequenas revelações como formas do fantasma do amado prendê-la, ao contrário, ela mesma dá o compasso. o ouvinte se junta a ela porque entende essa leveza cadenciada, universal: viagens de avião, balanços de parque, corações com asas, ventanias de março. a letra abaixo é efetivamente o que billie canta:

A cigarette that bears a lipstick's traces
An airline ticket to romantic places
And still my heart has wings
These foolish things remind me of you
A tinkling piano in the next apartment
Those stumbling words that told you what my heart meant
A fair ground's painted swings
These foolish things remind me of you


You came you saw you conquer'd me
When you did that to me
I knew somehow this had to be


The winds of March that made my heart a dancer
A telephone that rings but who's to answer?
Oh, how the ghost of you clings!
These foolish things remind me of you


foi o coração dela que dançou em março, foi ela quem disse atropeladamente que o amava. que imagem melhor que um telefone tocando e ninguém o atendendo numa canção que parece sonhar acordada? apesar de ela se descrever como "conquistada", a decisão de que aquilo tinha que acontecer é toda dela. o "somehow", em vez de indicar incerteza, representa o instinto, o gut feeling.

a letra continua infinitamente (ver o link acima), mas esse "novo" trecho finca as lembranças em bases reais: menciona-se, por exemplo, qual era o tal lugar romântico visitado: paris, é óbvio (The Île-de-France with all the gulls around it, Wild strawberries only seven francs a kilo). além disso, emparelha-se versos desconexos  – The sigh of midnight trains in empty stations/ Silk stockings thrown aside dance invitations  – e fala-se das músicas de crosby, do sorriso de garbo. a música parece realmente inscrever esse romance no Tempo, e com isso datá-lo. não há mais o tom de sonho perturbado por telefones que tocam sem cessar: a música fica mais e mais romântica, e fica mais e mais aparente que os dois tiveram algo duradouro (não são apenas os ventos de março, fala-se também, mais adiante, da beleza da primavera).

do jeito que billie canta, o sujeito poderia bem ter colocado o coração dela no mix walita e apertado o botão purê. não há passeios em parques, jantares à luz de vela em mesinhas escondidas em restaurantes, meias de seda atiradas para longe (sexo, sexo, sexo), convites para dançar. cortar a primeira estrofe foi outra maneira de fazer a canção parecer mais inexata, menos derivada de um relacionamento real. o que sobrou? temos apenas cigarros com o batom dela, uma passagem de avião para um lugar romântico não nomeado, e ela sentindo-se elevada, o coração alado, por tudo isso: pelo piano, pelo balanço no parque. billie faz a música parecer um réquiem quase platônico, já a versão completa de ella é sofregamente romântica, com lembranças felizes em paris em número suficiente para que se esqueça que aquele relacionamento começou não com passeios no sena e morangos a sete francos na feira, mas de uma forma espontânea, instintiva, e surpreendentemente fiel à vida: You came you saw you conquer'd me/ When you did that to me/ I knew somehow this had to be.

eu adoro essa música e fico muito feliz de reativar este blog com ela.

terça-feira, 22 de março de 2011

2 kool 2 be 4-gotten – lucinda williams



do álbum car wheels on a gravel road (best! record! ever!), de 1998. esta versão é de um episódio do programa saturday night live, exibido em 1999. no final do texto, você poderá baixar três versões de estúdio da música (a segunda delas, aliás, faz parte do bootleg mais valioso de todos os tempos no que concerne lucinda williams).


no dia do meu aniversário, retorno com a que deve ser a minha canção favorita da lucinda, uma música estranha e críptica sobre a decrepitude da matéria e das relações humanas (ela abre com "you can't depend on anything really/ there's no promises, there's no point"). é uma canção sobre perda, e também sobre morte & perigo, desde o lendário pacto que aquele músico de blues famoso robert johnson supostamente fez com o diabo (em troca de uma habilidade inacreditável na guitarra), até um encantador de serpentes que consegue evitar ser picado e um homem prestes a pular de uma ponte que quase consegue convencer sua namorada a se juntar a ele etc.

a música foi composta a partir de um livro de fotografias de juke joints – esses bares depauperados, de beira de estrada do sul americano – e o miolo dela traz diversas imagens do livro: "no dope smoking, no beer sold after 12 o'clock" (há uma placa com esses dizeres), "bathroom wall reads, 'is god the answer? yes'" (há essa inscrição numa porta de banheiro) etc. 2 kool 2 be 4-gotten tá grafado assim, inclusive, por conta de uma foto, e o "junebug vs. hurricane" que ela repete três vezes no final concernem duas gangues rivais (e não exatamente joaninhas e furacões, embora uma música aberta assim valide o que o ouvinte bem entender), e isso também está grafado numa das paredes de um dos bares.

tudo isso parece preso ao passado, não se olha para o futuro nessa música – o "there's no promises, there's no point" atenta para a repetição infinita desse presente apático. é uma narrativa aparada no desconhecido, meio carnavalesca (uma sucessão de bizarrices desfilando à sua frente), anticientífica (gente vendendo alma ao demônio, gente bebendo veneno de cobra), quase antimatéria – e mágica, essa qualidade viajando-atráves-do-éter da vida. quando, na seção final, lucinda inventa a história de um cara que pede para a sua namorada pular de uma ponte com ele e ela declina, dizendo que ele está diante do reflexo de sua própria morte (e disso apenas), isso alça a música ao transcendental. aqueles hey-heys mágicos servem para marcar exatamente uma existência do "eu individual" só plenamente realizada mediante um contato com o outro. nós só conhecemos essa menina pelos olhos de seu namorado suicida, o que permite a ela compreender o mundo a partir de um olhar diferenciado e desencantado. a sensibilização pela experiência do contato marca tanto a primeira metade da música (uma colagem de imagens que une lucinda & ouvinte à ontologia de sua criação, algo partilhado por excelência com as fotos nas quais a música baseou-se) quanto essa segunda (uma narrativa de outra ordem, centrada em uma situação isolada e em dois personagens aparemente alheios a qualquer registro fotográfico prévio), e é esta a eletrizante humanidade nas músicas da lucinda williams. eu amo essa música, essa música me ama. feliz aniversário, kiddo!

*

o álbum car wheels foi gravado/mixado três vezes. em austin (1995), com o então fiel escudeiro gurf morlix; em nashville (1996), com steve earle; e em los angeles (1998), a versão final. não há grandes diferenças entre a segunda e a terceira versão, mas a primeira é bastante distinta, diferindo-se inclusive na letra (ela volta para os primeiros versos a fim de finalmente fechar a música).

*

há um bom tempo, escrevi umas coisas em inglês que foram postadas no fórum oficial:

i once read somewhere (i think on last.fm) that "only prince could get away with a song title like that" (or something like this). it was nice to discover in the other thread that photo from the juke joint book that clears the matter up. i've always defended those numbers, but since i've seen the picture they don't need any defenses – it is what it is. the junebug vs. hurricane thing doesn't matter anymore (i mean, if there's some hidden meanings behind junebug and hurricane). the only solid thing is that photograph, the red wall. i love this song even more after that – because of all its randomness, a collection of images that features significant insight over lucinda's creative process. since i've never seen the book, i wonder if the last part of the song (the girl and her boyfriend on a lake charles bridge) is in any way hinted at the book, or if it's "pure" lucinda.

*

the question remains unanswered: where this image comes from? it basically divides the song in two halves, the first like a straight, descriptive narrative, the latter a disjointed vignette, a bit out of place (mississippi/lake charles). the girl and her boyfriend on a lake charles bridge... who are them? i'm satisfied with the fact that i'll never know for sure (or that "lu's personal experiences" is a sensible answer in every way possible) – and i'm not this annoying and obsessively interested in those kinds of stuff, but 2 kool has such a richly detailed first half and we got ourselves this photograph hinting (just hinting) to all of its most mysterious sections – junebug vs. hurricane, why the numbers on the title et al. – that, likewise, i think i feel compelled to look for some picture for the other half. part of the last section's appeal, to my mind, is those dialogues, lucinda is not merely a narrator to a (supposedely) external event, she incorporated what happened to her "catalogue" and is able to reproduce every word they say. her narration in the first part is, to my mind, even more "dramatized" than in the second (despite the fact that the latter is in first-person), since she seems to use the books to construct images and then, well, who knows – and this gives a creepy quality to the song. there's so much more at stake than just a did-he-jump/did-she-jump-along thing. deep down, i think it might be something she saw someday (an eye-witness account?), hence my curiosity for a (non-existent!) photo/record of it. oh well, i'll stop. yeah, i know it's a fruitless quest, but i don't mind.


*

now with 2 kool. in 2007, i had no idea what junebug vs. hurricane meant or what the reason behind those funky numbers on the title. and two years later the only thing i know for sure is that people once wrote some inscriptions on a red wall, lucinda saw them through the eyes of a photographer and the rest is history. i think i want to be familiar with every single aspect of this song because i was already nuts about it years ago, and those 14 months of heavy-listening only made the mystery richer: i'm still unable to grasp this song. it's not like i need to understand it, and more like i'd love to hear more stuff about it since there's so much potencial for storytelling in it. i guess i like to hear what people in general have to say about it. that's why i think that this project from robert (22 versions of the song) is so terrific. if anyone told me on april 23, '09 that a french guy would be shipping a year later from paris to rio a cd with TWENTY-TWO versions of a single song, i wouldn't believe it. and then, by listening to every single track of the compilation, you realize that lucinda gave credits to the author of the book that inspired the song every time – and you can't help but admire how these things work, how masterpieces are created almost randomly and how they can bring together two admirers from different backgrounds. of course this can be said of every song, but i always wondered about lucinda's relation with this one in particular, especially in which sense the second part is linked with the first, how the inscription on that red wall and all signs and details from those mississippi bars brought us those star-crossed lovers at that lake charles bridge.

which is to say: i wonder but i don't think i really want to know; there's nothing to know really. the answer is obvious: lucinda's personal images & lucinda's astounding craft. it seems such a miracle that this song happened. i guess that when something strikes you as awesome you have a tendency to consider it a happy accident, a one-time wonder, and 2 kool is still the song i listen to the most. it's almost creepy to imagine what happened to me between 2007 and now, it seems like a watershed on most respects (not only regarding lucinda, obviously), but the idea that 2 kool is still able to entice me just as much as in 2007 is more than a reason to treasure lucinda for life. well, i wrote too much. i'm saving everything i've been writing on this forum. i think it should be... let's say heartwarming to read it all in the near future.


*

de fato, ler isso tudo meses depois é "heartwarming" to say the least.