do primeiro disco da compilação lady day – the complete billie holiday on columbia (1933-1944), de 2001.
billie não fez fama com lps. ela tem
pouquíssimos discos, e apenas um de nota: o último, lady in satin, que parece existir apenas com o propósito de notarmos como sua voz está craquelada, o espírito devastado sobrevindo das ranhuras). seus compactos (78rpm) exigiam que as músicas não tivessem
duração superior a quatro minutos, então todo o sensacional catálogo dela na
columbia segue esse preceito. qual foi minha surpresa, há um
tempo, ao ver que uma das minhas letras preferidas (a desta música, escrita a três mãos) é muito mais extensa, e que billie começou a
música no meio e terminou antes do fim.
descobri isso quando peguei uma versão de quase oito minutos da ella
fitzgerald e reparei que desconhecia metade da letra.
metade dos três minutos e vinte dessa música consiste no arranjo do teddy wilson e orquestra. billie entra com o bonde andando, o que é perfeito pruma música sobre apegar-se desajeitadamente ao passado. o que é impressionante é que a letra integral da música é muito inferior à usada por billie. eis a parte inicial da letra, cortada desta versão:
Oh! Will you never let me be?
Oh! Will you never set me free?
The ties that bound us
Are still around us
There's no escape that I can see
And still those little things remain
That bring me happiness or pain
cortou-se isso e o tom queixoso foi embora, além de uma dessas oposições tão bobas porque impossíveis de dissociar (felicidade ou dor?). a estrofe inicial dá um tom de armadilha emocional a uma música que entende as recordações de um amor pretérito com a leveza que elas têm – ou melhor, que elas podem ter. a partir daí a letra enumera diversos drops, momentos perdidos no tempo, uma ladainha que só faria sentido para ela, e a desorientação que ela sente é transmitida a quem escuta: billie começa falando sobre um cigarro que traz marcas de batom, uma passagem de avião para recantos românticos. ela não parece incorrer nessas pequenas revelações como formas do fantasma do amado prendê-la, ao contrário, ela mesma dá o compasso. o ouvinte se junta a ela porque entende essa leveza cadenciada, universal: viagens de avião, balanços de parque, corações com asas, ventanias de março. a letra abaixo é efetivamente o que billie canta:
A cigarette that bears a lipstick's traces
An airline ticket to romantic places
And still my heart has wings
These foolish things remind me of you
A tinkling piano in the next apartment
Those stumbling words that told you what my heart meant
A fair ground's painted swings
These foolish things remind me of you
You came you saw you conquer'd me
When you did that to me
I knew somehow this had to be
The winds of March that made my heart a dancer
A telephone that rings but who's to answer?
Oh, how the ghost of you clings!
These foolish things remind me of you
foi o coração dela que dançou em março, foi ela quem disse atropeladamente que o amava. que imagem melhor que um telefone tocando e ninguém o atendendo numa canção que parece sonhar acordada? apesar de ela se descrever como "conquistada", a decisão de que aquilo tinha que acontecer é toda dela. o "somehow", em vez de indicar incerteza, representa o instinto, o gut feeling.
a letra continua infinitamente (ver o link acima), mas esse "novo" trecho finca as lembranças em bases reais: menciona-se, por exemplo, qual era o tal lugar romântico visitado: paris, é óbvio (The Île-de-France with all the gulls around it, Wild strawberries only seven francs a kilo). além disso, emparelha-se versos desconexos – The sigh of midnight trains in empty stations/ Silk stockings thrown aside dance invitations – e fala-se das músicas de crosby, do sorriso de garbo. a música parece realmente inscrever esse romance no Tempo, e com isso datá-lo. não há mais o tom de sonho perturbado por telefones que tocam sem cessar: a música fica mais e mais romântica, e fica mais e mais aparente que os dois tiveram algo duradouro (não são apenas os ventos de março, fala-se também, mais adiante, da beleza da primavera).
do jeito que billie canta, o sujeito poderia bem ter colocado o coração dela no mix walita e apertado o botão purê. não há passeios em parques, jantares à luz de vela em mesinhas escondidas em restaurantes, meias de seda atiradas para longe (sexo, sexo, sexo), convites para dançar. cortar a primeira estrofe foi outra maneira de fazer a canção parecer mais inexata, menos derivada de um relacionamento real. o que sobrou? temos apenas cigarros com o batom dela, uma passagem de avião para um lugar romântico não nomeado, e ela sentindo-se elevada, o coração alado, por tudo isso: pelo piano, pelo balanço no parque. billie faz a música parecer um réquiem quase platônico, já a versão completa de ella é sofregamente romântica, com lembranças felizes em paris em número suficiente para que se esqueça que aquele relacionamento começou não com passeios no sena e morangos a sete francos na feira, mas de uma forma espontânea, instintiva, e surpreendentemente fiel à vida: You came you saw you conquer'd me/ When you did that to me/ I knew somehow this had to be.
eu adoro essa música e fico muito feliz de reativar este blog com ela.